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Adoção por Casais LGBTQIA+: Uma Questão de Justiça, Cuidado e Argumentação Ética

Introdução

A adoção por casais LGBTQIA+ continua sendo um tema amplamente debatido em sociedades que, embora tenham avançado em direitos civis, ainda permanecem presas a concepções tradicionais de família.
Frequentemente, os discursos contrários a essa prática são apresentados como raciocínios objetivos, mas quando analisados revelam preconceitos, falácias e desconhecimento das evidências empíricas.
Este artigo/ensaio argumenta que negar a adoção a casais do mesmo sexo não apenas carece de fundamento lógico e científico, como também viola direitos fundamentais e limita o acesso de crianças a lares seguros e amorosos. Ao longo do texto, são analisadas ambas as posturas e apresentada uma posição fundamentada com base na argumentação crítica, no direito, na saúde pública e na psicanálise.
Como psicanalista clínica, trabalho com pacientes LGBTQIA+ e aprendi que, mais do que as técnicas e que se interessar pelo conflito de quem lhe procura, o que verdadeiramente permite ajudar é a capacidade de
desenvolver um amor incondicional pelo outro. Só assim é possível escutar ativamente, compreender, acompanhar e ajudar com empatia. Essa experiência pessoal também sustenta minha postura neste ensaio: a orientação sexual não limita a capacidade de amar, cuidar e educar.

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Argumento 1:
As objeções tradicionais se baseiam em falácias lógicas e preconceitos As posturas contrárias à adoção por casais LGBTQIA+ frequentemente recorrem a sofismas como o ad hominem, o falso dilema ou a apelação à ignorância. Como afirma Bordes Solanas (2011), essas estratégias violam o critério de suficiência argumentativa, aparentando validade sem base racional. Por exemplo, afirmar que crianças precisam obrigatoriamente de um pai e uma mãe biológicos comete a falácia da generalização indevida. Da mesma forma, supor que a família “natural” é superior simplesmente porque “sempre foi assim” é um argumento inválido ad antiquitatem, já identificada pela lógica informal como um raciocínidefeituoso.

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Argumento 2:
A evidência empírica comprova a idoneidade das famílias diversas A American Psychological Association (2005) conclui que não há diferenças significativas no desenvolvimento emocional, cognitivo ou social
entre filhos de casais heterossexuais e homossexuais. Szalma (2024) argumenta que os modelos tradicionais do ciclo de vida familiar precisam ser atualizados para refletir a diversidade contemporânea. Ryan e Mallon (2005) destacam que o que realmente importa é a estabilidade emocional e a qualidade do vínculo afetivo. Portanto, rejeitar casais LGBTQIA+ como adotantes equivale a ignorar evidências amplamente aceitas pela comunidade científica.

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Argumento 3:
A exclusão de adotantes LGBTQIA+ fere princípios éticos e jurídicos Do ponto de vista legal, impedir a adoção por pessoas LGBTQIA+ configura uma forma de discriminação institucionalizada. A Corte
Interamericana de Direitos Humanos (2018) enfatiza que políticas públicas devem se basear na garantia de direitos, e não em preconceitos sociais.
Reyes e Escalona (2020) afirmam que uma boa argumentação exige a suspensão de julgamentos preconcebidos e favorece a análise racional. Excluir pessoas aptas a oferecer um lar seguro e amoroso contradiz o princípio de igualdade perante a lei e prejudica diretamente crianças que aguardam por uma família.

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Argumento 4:
A saúde pública reconhece as famílias diversas como ambientes protetores
A Organização Mundial da Saúde (2013) afirma que o desenvolvimento saudável na infância depende de relações afetivas estáveis, independentemente da composição familiar. Do ponto de vista da saúde
pública, limitar o acesso à adoção com base em preconceitos ideológicos vai contra recomendações internacionais e reduz as oportunidades de bem-estar infantil. Negar a adoção a pessoas capacitadas equivale a restringir o direito da criança a crescer em um lar funcional.

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Argumento 5:
A psicanálise demonstra que a função parental não depende do gênero
Segundo a teoria psicanalítica, autores como Freud (1923), Jung (1954) e Winnicott (1971) estabeleceram que o desenvolvimento psíquico infantil não depende do sexo biológico dos cuidadores, mas de sua capacidade de exercer funções parentais simbólicas. Winnicott, por exemplo, define o cuidador “suficientemente bom” como aquele que proporciona um ambiente seguro e emocionalmente acolhedor. Essas funções, conhecidas como “materna” (cuidado) e “paterna” (limite), podem ser exercidas por  qualquer configuração familiar que garanta um ambiente saudável. Negar essa possibilidade é um erro conceitual e empírico sobre a constituição subjetiva.

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Discussão da postura oposta
Aqueles que se opõem à adoção por casais LGBTQIA+ argumentam que as crianças poderiam sofrer rejeição social ou enfrentar crises de identidade. No entanto, esse argumento comete um sofisma ad
consequentiam, pois presume que as consequências sociais de um fato justificam sua proibição. Como explicam Bordes Solanas (2011) e Reyes e Escalona (2020), uma argumentação válida não pode se basear em consequências indesejadas quando estas decorrem de preconceitos sociais, e não de danos objetivos. Em vez de impedir a adoção, a solução é educar a sociedade para o respeito à diversidade.

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Conclusão
Negar a adoção a casais LGBTQIA+ é uma prática insustentável do ponto de vista lógico, ético e empírico. As objeções tradicionais estão repletas de falácias e se opõem à evidência de que o essencial na criação de filhos não é o gênero dos cuidadores, mas o afeto, a estabilidade e o cumprimento das funções parentais. O Estado tem a responsabilidade de proteger o bem-estar infantil, e isso inclui ampliar as oportunidades de adoção para todas as pessoas capacitadas, independentemente da orientação sexual. Somente por meio de uma argumentação livre de preconceitos poderemos construir uma sociedade mais justa e inclusiva.

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Referências
  • American Psychological Association. (2005). Parentalidade lésbica e gay. https://www.apa.org/pi/lgbt/resources/parenting-full.pdf
  • Bordes Solanas, M. (2011). As armadilhas de Circe: Falácias lógicas e argumentação informal. Editorial Cátedra.
  • Corte Interamericana de Direitos Humanos. (2018). Opinião consultiva OC-24/17: Identidade de gênero, igualdade e não discriminação a casais do mesmo sexo. https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_esp.pdf
  • Freud, S. (1923). O ego e o id (Vol. XIX, Obras Completas). Biblioteca Nueva.
  • Jung, C. G. (1954). Os arquétipos e o inconsciente coletivo. Fondo de Cultura Económica.
  • Organização Mundial da Saúde. (2013). Recomendações para prevenir a violência contra crianças: orientações para os sistemas nacionais de proteção infantil. https://apps.who.int/iris/handle/10665/85652
  • Reyes Almarza, M. M., & Escalona Gálvez, N. M. (2015). Argumentação para todos: Manual teórico-prático para educadores, estudantes e curiosos sobre a argumentação. Editorial Pentian.
  • Ryan, C., & Mallon, G. P. (2005). Pais adotivos e de acolhimento lésbicas e gays: Recrutamento, avaliação e apoio a um recurso inexplorado para crianças e jovens. Child Welfare, 84(2), 151–170.
  • Szalma, I. (2024). Ciclo de vida familiar. Salem Press Encyclopedia. https://research-ebsco-com.tu.opal-libraries.org/c/chhp5g/viewer/html/cayyj4lp7j
  • Winnicott, D. W. (1971). Realidade e jogo: O espaço potencial entre o indivíduo e a sociedade. Editorial Gedisa.